sábado, 2 de maio de 2015

A luta da defesa contra os clichês punitivos no Tribunal do Júri



“Está com pena? Leva pra casa!” Este é um comentário bem frequente dito pelo senso comum, toda a vez que um Defensor Público manifesta sua gana na defesa de seu defendido.
“Bandido bom é bandido morto”; “Direitos humanos para quem?, “Quero ver se o pessoal dos direitos humanos vai amparar a família deste policial”, “Tem que fuzilar e mandar a conta da bala para a família”, “Se não bastasse não poder matar, ainda temos que pagar as três refeições (geralmente azedas) por dia para esse monstro!”… Todos esses clichês são também mencionados frequentemente no ambiente familiar, nos corredores dos fóruns e, não raras vezes, em rede nacional, por emissoras de televisão. Certa vez, um conhecido jornalista, em horário nobre, falava sobre um dos delitos previstos no Código de Trânsito, concluindo seu comentário com a pérola: “Para certos crimes, não deveria existir direito de defesa”.
O “outro”, o bárbaro, é aquele visto pelo homem civilizado – aquele de linguagem polida, do bom vestuário, do cultivador de boas maneiras – como aquele que se nega ao convívio amistoso, que rompe com as regras e com os limites impostos pela sociedade. Por falar nessa espécie normativa, é de suma importância frisar que, ao contrário do que afirma o mais conhecido filósofo da mídia brasileira, a regra não é clara, o que demonstra a importância da linguagem para o direito.
A função do defensor público, neste contexto, acaba sendo avaliada de forma negativa pela sociedade, justamente por esta imagem do “outro-acusado” concebida por uma cultura autoritária. A defesa é vista como um obstáculo ao poder punitivo ou, ainda, como um elemento importante no incentivo da impunidade.
Esta dificuldade decorre sobretudo porque estes conceitos, ou melhor, estes estigmas estão introjetados no imaginário coletivo. O “João-do-passo-certo” repudia qualquer ato moralmente equivocado, mesmo que de maneira sorrateira cometa os seus ilícitos que podem ser justificados em um conjunto de tradições que fogem o modelo republicano: são os falsos recibos utilizados para a obtenção de uma melhor dedução do Imposto de Renda; as tentativas, que em alguns casos chegam a ser burlescas, de fugir da tributação existente nos postos de alfândega existentes nos aeroportos, os crimes contra a honra praticados em momentos de indignação, a seletividade na distinção, que passa pelo socioeconômico, entre o usuário e o traficante de drogas, entre outros exemplos.
Sem sombra de dúvida, a atuação da defesa é marcada pela necessidade de superar estigmas, que adquire contornos de um grande desafio quando se trata da atuação no Tribunal do Júri.
Nesse momento, não se pode ignorar o término de mais uma Semana Nacional do Tribunal do Júri estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça . A atuação defensiva intransigente pode não se mostrar conveniente quando o objetivo é obter metas, “colocar em dia o passivo de processos”, mesmo que para isso se mostre necessário esquecer que antes mesmo dos autos existem pessoas, dramas e destinos a serem decididos.
Quando entramos no plenário, por exemplo, a primeira missão é, precisamente, tentar desfazer esta imagem preconcebida do “bandido”. Todos sabem que, no júri, o “réu entra condenado”. Por isso é necessário explicar que o João, o Jurandir, o Waldemar, enfim, os acusados no processo, tem um rosto. Esclarecer que o julgamento decorre de um “devido processo legal” e que a pena deve ser proporcional ao fato praticado. E mais: que as leis são as condições sob as quais os homens independentes uniram-se em sociedade, pois estavam decididos a deixar o estado de guerra. E se há leis para punir, também existem aquelas que disciplinam o processo, limitando o poder do estado. E que o julgamento deve se dar em relação ao fato, e não à pessoa que está ali sentada.
Não se pode, ainda, desprezar a condição do Estado-acusação, que sob o manto de uma suposta imparcialidade, permite que a luta na sessão plenária se desenvolva de maneira desigual. Afinal, como convencer o jurado, o leigo, que não deve confiar cegamente no membro do Ministério Público, que, ao visar a promoção da justiça, e não da acusação, necessita pleitear pela condenação, já que em outras situações poderia pugnar pela absolvição?
A despeito da existência do quesito obrigatório, que permite inclusive a absolvição por clemência, uma vez que a soberania dos veredictos impede o provimento de recurso sob o argumento legal previsto no artigo 593, inciso III, d, Código de Processo Penal, nem a luta defensiva se voltará obrigatoriamente pela absolvição. A depender do caso, e não se pode perder de vista a facticidade que marca o fenômeno jurídico, o atuar defensivo focará em uma desclassificação, no reconhecimento de um privilégio ou no afastamento de uma qualificadora.
Ainda sobre o artigo 593, inciso III, alínea “d”, Código de Processo Penal, mostra-se imprescindível dizer o óbvio: a supremacia reconhecida no ordenamento jurídico é a constitucional, e não a legal. Na verdade, as interpretações inadequadas ao referido dispositivo legal são pautadas no desconhecimento sobre os conceitos de validade e vigência. Eliete Costa Silva Jardim aprofunda as questões pertinentes a essa hipótese de apelação (clique aqui), sendo essa a razão para a sugestão para àqueles que se mostrarem interessados ao tema.
Assim, observa-se que, antes da defesa técnica, é preciso desconstruir o imaginário coletivo, o que implica desempenhar um papel antipático. Isso porque, como se sabe, o jurado decide de acordo com a consciência e os ditames da justiça, sem motivar suas decisões. Trata-se daquilo que se entende por sistema da íntima convicção. Explicar, portanto, para a Dona Maria e para o Seu João que seus dogmas – ou seja, tudo aquilo que eles consideram verdade absoluta – não devem pautar seus julgamentos? Como contrapor um argumento técnico às crenças compartilhadas pelo imaginário coletivo? Por isto, a pertinência da categoria “defensorar”. Ele compreende, além do exercício da ampla de defesa e do contraditório, a árdua missão de desconstruir os dogmas dos jurados para que o tribunal do júri seja, efetivamente, uma instituição democrática. Menosprezar essa tarefa hercúlea, que representa levar à sério o Texto Constitucional, é permitir o desvirtuamento de uma instituição com assento constitucional e que o respeito não pode se restringir ao uso de roupas estranhas para o homem-comum, inspiração para cartunistas e fonte de inconvenientes para os que dela utilizam em país de clima tropical. Caso seja para simplesmente encenar, ao menos que se tragam as perucas.
Carolina Zago Cervo é Defensora Pública no Estado do Rio Grande do Sul, onde dirige o Núcleo de Defesa Criminal (NUDECRIM). Email: carolinacervo@defensoria.rs.gov.br.
 Eduardo Newton é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Foi Defensor Púbico do estado de São Paulo (2007-2010). Email: newton.eduardo@gmail.com
Publicado roiginalmente em : Justificando.com

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