A história do Brasil é uma narrativa de mandonismo e de obediência.
Desde a Colônia (1500-1822), nós somos o desdobramento da vontade dos
donos do poder territorial (político), econômico e jurídico. Os senhores
de terra, e posteriormente os detentores de outros recursos
(industriais, financeiros, midiáticos etc.), estabeleceram uma
hierarquia e do topo dela têm escrito e controlado a nossa história
política e social. Os mandões (da colônia, do Império, da República, das
ditaduras e das democracias meramente formais) criaram uma estrutura de
dominação clientelista (mantendo-se o cliente na ignorância e sob
cabresto), que chegou ao auge nos tempos do coronelismo. Essa prática de
relação política consolidou-se durante a Primeira República, também
chamada de Velha República (1889-1930), medrando do meio rural e
pequenas cidades até a capital do País. O termo “coronelismo” tem origem
nos coronéis da Guarda Nacional (criada em 1831), mas coronel foi
generalizado pelo povo como título de chefe político.
Essa
corporação foi implantada em todos os municípios brasileiros; não
obstante ter sido militar, era uma expressão do poder civil. A
autoridade sobre o regimento local, exercida sob a patente de coronel,
era entregue a um chefe político. Esses chefes, que já eram donos de
fato do lugar, ao receberem um poder militar legalmente reconhecido,
mais legitimavam o poder de mando, consolidando o prestígio pessoal. A
Guarda Nacional foi extinta em 1889, antes, portanto, da República
Velha, mas o poder angariado pelos coronéis não morreu. Era dessa gente o
poder político, econômico e jurídico. Esse sistema ficou arraigado nos
nossos costumes. A hierarquia de cabo eleitoral, de chefe de distrito,
de coronel, se não sobrevive com a mesma pujança, perdura como um fundo
que infesta o sistema eleitoral até nossos dias. A democracia nascida
depois do regime militar (em 1985) é não só de viés basicamente
eleitoral (não cidadã), como também “coronelista” (porque o coronelismo
continua impregnado na “alma” do brasileiro).
Ainda hoje, a
substituição de partido político no comando do governo em qualquer nível
não leva à troca do método de governança. Antigamente, é verdade, havia
mais coerência no sistema: os que perdiam as eleições compreendiam
perfeitamente que “agora é a vez deles”. Então, resignadamente, os
derrotados se punham a militar pelo retorno ao poder e ao cofre público.
Nos tempos dos coronéis, os mandões, se vencedores, sustentavam os seus
com os meios do erário; fora do poder, mantinham a “sua gente” com os
próprios bolsos. A questão de honra pública nacional nunca foi o
pertencimento cívico a uma ideologia partidária, mas o alinhamento a um
potentado local. Ser marcado e reconhecido como alinhado a um coronel
nos bons e maus tempos era um sinal de dignidade.
Atualmente,
alguns dos que estão fora do poder protestam, mas não no relevante.
Note-se, por exemplo, que na CPMI que investigou a roubalheira na
Petrobrás alcançou-se o acordo (em novembro/14, entre o PT e o PSDB) de
não quebrar o sigilo das empresas envolvidas (que são as financiadoras
das campanhas de ambas as siglas). Caso isso fosse feito é de se supor
que seria encontrado nos dutos da propina o nome de parlamentares das
mais variadas greis partidárias, de situação e de oposição. É isso que
somos: um país movido a interesses intermediados por políticos. Já não
temos os coronéis (ou eles estão se escasseando), mas preservamos muito
da mentalidade clientelista (com tonalidade “servilista”, sem priorizar a
distribuição de renda ou educação como fonte de progresso, mesmo que
sobre a importância desses temas haja unanimidade nacional). Nossas
eleições não são episódios que atraiam por embates de pensamentos, mas
por interesses. Um governante não é eleito como um pensador ou um
gerente do Brasil, mas como um intermediário de negócios, um despachante
de interesses, em geral não confessáveis. Quanto mais satisfaz esses
interesses clientelistas, maior a chance de ser eleito (ou de governar
sem grandes traumas). Nas eleições de 2014, vencidas novamente pelo PT,
muitos eleitores votaram em Dilma por convicção, outros porque suas
condições de vida melhoraram (no período de 2003 a 2010), mas ainda
preponderou o resgate de práticas de clientelismo “em favor” dos mais
carentes. Vejamos a constatação (e o gráfico) do Datafolha:
Sem
ilusão, de acordo com nossa tradição histórica patrimonialista,
político que não gasta (ainda que seja dinheiro do Estado) não se elege
e, salvo exceção, político que não rouba (ou que não se envolve com a
corrupção) não tem para gastar. E o povo, regra geral, não quer saber de
ideia, quer saber da parte dele: isso é o que explicaria os votos
majoritários em Dilma dados pelos pobres e excluídos, pela classe média
baixa e classe média intermediária (muitos votaram pensando na
preservação das benesses, ainda que socialmente distributivas, que lhe
são proporcionadas pelo governo, mas vendidas como bondade do
governante: bolsa família,
bolsas universitárias, auxílio saúde etc.); já a maioria da classe
média alta e do topo (classe alta) votou em Aécio, porque muitos querem a
manutenção dos seus privilégios de classe, que correm riscos quando há
distribuição de “benesses” para o “povão” (programas sociais).
Mário Magalhães (Folha)
escreveu: “Não é verdade que todos os ricos votam em Aécio e todos os
pobres votam em Dilma; de cada três entrevistados de classe “alta'', no
topo da escala, dois votam no tucano (um vota na Dilma); de cada três
“excluídos'', no pé, dois preferem a petista (um vota em Aécio). Como os
excluídos e os menos favorecidos nas escalas sociais (alvos
preferenciais do clientelismo que não prioriza a educação como alavanca
de crescimento) são numericamente majoritários, aí estaria a explicação
da vitória de Dilma.
O povo é tocado a marketing, promessas,
favores e valores, sejam os valores privados, tirados do bolso do
político que roubou ou vai roubar, sejam os valores públicos, levados
pelas bolsas clientelistas que o PSDB inventou e que o PT fatura. E a
tudo se justifica, na lógica de nossos deploráveis hábitos. Não há
petista que reconheça que seu partido roubou (sim, não é só o PT: isso é
verdade) da Petrobrás, apesar das evidências e mesmo das confissões;
todo petista alega julgamento político do Mensalão, apesar de os
ministros do STF terem sido (majoritariamente) nomeados por Lula e
Dilma. Não há petista que reconheça que essas verbas bilionárias moveram
a eleição e reeleição de Dilma.
Ao tempo da Ditadura, o Nordeste
ganhava favores e votava na Arena; os nordestinos eram execrados como
alienados pela “esquerda”. Hoje o Nordeste (assim como os carentes
espalhados por todo o País) majoritariamente “retribui” em votos o
“reconhecimento” pelos benefícios públicos que lhe são dirigidos. É o
mesmo clientelismo, mas a esquerda, hoje, nomeia esse hábito de
consciência eleitoral. Somos isso e nos justificamos. Não vai ser fácil
superar a nossa própria História. Mas sem superá-la não seremos nunca
uma nação civilizada de primeiro mundo.
Publicado em : JusBrasil.com / Por :Luiz Flávio Gomes ( Professor)
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