segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Na Indonésia pena de morte é institucionalizada, no Brasil é extrajudicial


Por Caio Paiva

 Abaixo um artigo, sintetisa muito bem a realidade da politica criminal no Brasil e suas nuancias, o autor traça um paralelo entre o caso do brasileiro fuzilado na Indonésia e nossa realidade.



I. Na “guerra” contra as drogas os soldados estão em todos os Poderes

Agora, eu fico imaginando o seguinte: o Brasil tem que dar um exemplo veemente, porque nós temos um brasileiro no corredor da morte de um país asiático, porque ele não engoliu a droga, mas levou na quilha de uma prancha de surf. E está lá no corredor da morte. Então, por que o Brasil vai ser facilitário, quando, no cenário internacional, há uma repreensão gravíssima aos estrangeiros que trazem drogas para o nosso país?”.
Este trecho foi extraído de uma fala de: (a) Raquel Sheherazade; (b) Datena; (c) Sessão de comentários do site UOL; (d) Nenhuma das respostas anteriores. Acertou quem marcou a letra (d). A opinião transcrita é de ninguém menos do que o Min. do Supremo Tribunal Federal,Luiz Fux, que, longe de representar uma exceção no Poder Judiciário brasileiro, bem ilustra que a mentalidade de “guerra” contra as drogas não conta apenas com soldados de fardas (policiais – Poder Executivo) ou ternos (parlamentares – Poder Legislativo), tendo igualmente representantes togados.
Quando você, leitor(a), estiver lendo este texto, um brasileiro terá recebido a pena de morte por fuzilamento na Indonésia, em razão de ter tentado ingressar naquele país com drogas em 2003. Este texto é dedicado, pois, à memória dele, Marco Archer Cardoso Moreira, cujo sofrimento, particularmente e felizmente, sequer tenho condições.

II. A pena de morte e o Direito Internacional dos Direitos Humanos: sobre as possibilidades de demanda contra a Indonésia em órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos

O Direito Internacional dos Direitos Humanos reprime a pena de morte, não a prevendo sequer para os crimes mais bárbaros previstos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma), cuja pena máxima é a de prisão perpétua.
No plano global, o art. 6.2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP),estabelece que “Nos países em que a pena de morte não tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas nos casos de crimes mais graves (…)”. E o seu Segundo Protocolo Facultativo, por sua vez, avança para dizer que “Nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado Parte no presente Protocolo será executado” (art. 1.1), e também que “Os Estados Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte no âmbito da sua jurisdição” (art. 1.2). Referido Protocolo Facultativo sequer admite reservas, exceto a formulada “no momento da ratificação ou adesão que preveja a aplicação da pena de morte em tempo de guerra em virtude de condenação por infração penal de natureza militar de gravidade extrema cometida em tempo de guerra” (art. 2.1). Igual preocupação legislativa é encontrada no plano regional da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que o art. 4.1 da Convenção Americana estabelece que “Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais graves (…)”, e o seu Protocolo Adicional, da mesma forma que seu correspondente normativo global, prevê que “Os Estados-Partes neste Protocolo não aplicarão em seu território a pena de morte a nenhuma pessoa submetida a sua jurisdição”, estabelecendo, ainda, idêntico sistema de reservas.
O Brasil aderiu a todos estes Tratados, reservando-se, porém, no direito de aplicar a pena capital no caso de guerra declarada, em conformidade com o art. 5º, XLVII, a, da CF. Embora a permissão seja para apenas em caso de guerra, tal ideologia não deixa de consistir, conforme alerta Pedro Abramovay, numa “mácula no nosso ordenamento jurídico que enfraquece a posição brasileira contra a pena de morte no cenário internacional”.
A Indonésia, embora não tenha aderido ao seu Segundo Protocolo, é parte do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que, conforme foi visto acima, somente tolera a aplicação da pena de morte pelos países que ainda não a tenham abolido “nos casos de crimes mais graves” (art. 6.2), disposição esta contra a qual a Indonésia não fez nenhuma reserva. Daí avançamos, portanto, para os seguintes questionamentos: (1) O crime de tráfico de drogas pode ser considerado de natureza “grave”? (2) A Indonésia violou o PIDCP? (3) Se a resposta for sim, a Indonésia poderia ter sido demandada perante órgãos da ONU de proteção dos direitos humanos?
Pois bem. A resposta para primeira pergunta é absolutamente negativa, pois, conforme registra Luis Arroyo Zapatero em estudo específico acerca do tema, o entendimento, tanto no plano global como no plano regional da OEA, veiculado em diversos Informes, Relatórios e Estudos, aponta para a conclusão de sistematicamente negar legitimidade da previsão da pena de morte para crimes relacionados com as drogas, conferindo interpretação severamente restritiva à expressão “crimes mais graves” (prevista tanto no PIDCP como na CADH), a qual abrangeria somente delitos com consequências mortais ou outras consequências extremamente graves. Tal interpretação restritiva restou acolhida na Observação Geral nº. 6 do Comitê de Direitos Humanos da ONU, órgão que, depois, aindaavançou para esclarecer, em suas Observações Finais sobre o Irã, que os crimes que não impliquem em perda de vidas humanas não podem ser castigados com a pena de morte. Ainda no sistema global, no mesmo sentido é a orientação da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que já instou os Estados a velarem para que “o conceito de ‘crimes mais graves’ se limite aos delitos intencionais com consequências fatais ou extremamente graves e que não imponham a pena de morte por atos não violentos (…)”.
Apenas para ilustrar, porquanto a Indonésia não se vê, obviamente, sujeita ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, também na nossa região a interpretação que se dá à expressão “crimes mais graves” é notadamente restritiva, já tendo a Corte Interamericana decidido, p. ex., que “ao considerar todo responsável do crime de homicídio doloso como merecedor de pena capital, se está tratando os acusados deste crime não como seres humanos individuais e únicos, senão como membros indiferentes e sem rostos de uma massa que será submetida à aplicação cega da pena de morte”. Tendo a Corte censurado a aplicação da pena capital em hipótese de homicídio doloso sem consideração das circunstâncias do caso concreto, já se pode deduzir que igual ou mais severa seria se instada a se manifestar sobre a pena de morte para o crime de tráfico de drogas.
A partir deste raciocínio, não sendo o crime de tráfico de drogas considerado de natureza “grave” segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, chego, então, à minha segunda conclusão, respondendo, pois, a segunda pergunta: sim, a Indonésia violou o PIDCP, mais precisamente o seu art. 6.2. Logo, estamos habilitados a passar para a terceira pergunta, relativa à possibilidade de a Indonésia ser demandada perante órgãos da ONU de proteção internacional dos direitos humanos.
Para o que interessa à esta ocasião, importa dizer que o PIDCP tem como órgão para fiscalizar o seu cumprimento pelos Estados-Partes o Comitê de Direitos Humanos, que, por sua vez, conta com dois procedimentos de apuração: (a) as demandas interestatais – artigos 41 a 43; e (b) as petições individuais – Protocolo Facultativo. O Brasil poderia ter denunciado a Indonésia no Comitê de Direitos Humanos da ONU? Não, pois nem o Estado brasileiro nem tampouco a Indonésia reconheceram a competência do Comitê para receber e examinar denúncias interestatais. Um familiar ou uma entidade poderiam ter denunciado a Indonésia no referido Comitê? A resposta também é negativa, pois a Indonésia não aderiu ao Protocolo Facultativo do PIDCP que viabiliza as petições individuais, diversamente do Brasil, cuja adesão se deu – tardiamente – em 2009.
No entanto, se o acesso ao Comitê não seria permitido, o mesmo não se pode dizer do acesso ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, órgão de proteção e fiscalização extraconvencionaldos direitos humanos, cujas Resoluções, embora não vinculem juridicamente os Estados, eis que baseadas no dever de cooperação dos Estados com a própria ONU, não deixam de ter, porém, certa efetividade em alguns casos. A atuação do Conselho, aqui, poderia se dar mediante a adoção do seu Procedimento 1503, que, embora não se preocupe tanto com a situação individual das vítimas, eis que as petições individuais são utilizadas somente para caracterizar uma situação de violação flagrante e maciça de direitos humanos em um país ou região, pode concluir, conforme recorda André de Carvalho Ramos, “com recomendações de ações aos Estados, o que beneficiava as vítimas”. Logo, concluo com a resposta à terceira questão: a Indonésia poderia ter sido demandada perante o Conselho de Direitos Humanos, seja por meio de petição individual, seja por denúncia interestatal.

III. O Brasil e a falta de “moral” para cobrar clemência da Indonésia

O Brasil já foi responsabilizado por diversas vezes na Comissão Interamericana de Direitos Humanos por mortes provocadas por agentes estatais, a exemplo dos seguintes Casos:Wallace de Almeida, jovem, negro, assassinado pela PM do Estado do RJ em 1998; Jailton Neri da Fonseca, assassinado também pela PMERJ em 1992; Aluísio Cavalcante e outro, Clarival Xavier Coutrim, Celso Bonfim de Lima, Marcos Almeida Ferreira, Delton Gomes da Mota, Marcos de Assis Ruben e Wanderlei Galati, assassinados pela PMESP na década de 1980; Diniz Bento da Silva, assassinado pela polícia do Estado do PR em 1993; Caso Carandiru, com morte de 111 presos; Alonso Eugênio da Silva, morto pela PMERJ em 1992;Marcos Aurélio de Oliveira, assassinado pela Polícia Civil do RJ em 1993; Caso 42º Distrito Policial Parque São Lucas, com cerca de 50 detentos encarcerados numa “solitária” de um metro por três, dentro da qual agentes do Estado jogaram gases lacrimogênios, ocasionando a morte de 18 presos por asfixia; entre outros casos.
No ranking dos países com maior população carcerária, nosso país ocupa o quarto lugar ,estando a frente, aliás, da Indonésia, país mais populoso que o Brasil. Se Marco Archer teve um processo judicial antes de receber a pena de morte, a mesma “sorte” não teveAmarildo, um pedreiro de 42 anos, pai de seis filhos, a quem a PM do Estado do RJ cuidou de “fazer desaparecer”.
A conclusão não poderia ser outra: enquanto a pena de morte é institucionalizada na Indonésia, no Brasil ela é praticada extrajudicialmente e se esconde em “autos de resistência”, legitimada pela “guerra contra as drogas”. A Presidenta Dilma, ao invés de convocar o embaixador do Brasil na Indonésia para uma conversa, deveria convocar o seuMinistro da Justiça para – enfim – redefinirem a política do país a respeito das drogas.


Caio Paiva é Defensor Público Federal, especialista em ciências criminais, fundador do Curso CEI e editor do site www.oprocesso.com

Publicado originalmente em : Justificando.com


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